domingo, 22 de abril de 2012

Quixote - Vão-se os livros e ficam os textos


"— Tão rigorosa talvez que o seja — respondeu o nosso D. Quixote — porém tão necessária, duvido muito; porque, se se há-de dizer toda a verdade, não faz menos o soldado que executa o que lhe manda o capitão, do que o próprio capitão, que lho ordena. Venho a dizer que os religiosos, com toda a paz e sossego, pedem ao céu o bem da terra; e nós, os soldados e cavaleiros, executamos o que eles só requerem, porque a defendemos com o valor do nosso braço, e ao fio da nossa espada, não debaixo de teto, mas em campo descoberto, oferecidos em alvo aos insofridos raios do sol do verão, e aos arrepiados gelos do inverno. Deste modo, somos ministros de Deus na terra, e braço pelo qual se executa no mundo a sua justiça. E como as coisas da guerra, e as concernentes a elas, não se podem pôr em execução senão suando, cansando, e trabalhando excessivamente, segue-se que os que a professam têm sem dúvida maior trabalho que os outros, que em sossegada paz estão pedindo a Deus que favoreça aos que podem pouco. Não quero eu dizer (nem pelo pensamento me passa) que é tão bom estado o de cavaleiro andante, como o de religioso na sua clausura; só quero inferir que isto que eu padeço é sem comparação mais trabalhoso e aperreado, mais faminto e sedento, miserável, roto, e bichoso, pois é certíssimo que os cavaleiros andantes passados contavam muitas aventuras ruins no decurso de suas vidas, e, se alguns chegavam a ser Imperadores, pelo esforço do seu braço, à fé que bastante suor e sangue lhes custou; e se àqueles, que a tais graus subiram, houvessem faltado encantadores e sábios para os ajudarem, bem defraudados teriam ficado de suas esperanças."

(D. Quixote, Cervantes)

Um comentário:

Michelle Siqueira disse...

Encantador! O maior do clássicos da velha amiga literatura. E mais apropriado, impossível!

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