sábado, 1 de dezembro de 2012

Steven Naifeh: “Van Gogh provavelmente não se matou”

Depois de examinar milhares de documentos, escritor Steven Naifeh reconstrói a vida do pintor holandês e diz que ele nunca desejou o suicídio
GUILHERME PAVARIN


É provável que Vincent Van Gogh (1853 — 1890) não tenha se suicidado. A tese é dos escritores Steven Naifeh e Gregory White, autores da biografia Van Gogh: A Vida(Companhia das Letras, 1080 páginas, R$ 79,50), que chega dia 5 de dezembro às livrarias brasileiras.

A base do argumento dos biógrafos é que o holandês, influenciado pela sua criação calvinista, achava o suicídio uma “covardia moral”. A expressão estaria em cartas inéditas descobertas pelos autores. Segundo o próprio Van Gogh teria escrito, ainda que atormentado e imerso em melancolia, ele nunca cogitou acabar com a própria vida.

A versão que se tornou aceita, a de um tiro disparado contra si mesmo, nunca pôde ser confirmada. Evidências como a arma do crime jamais foram encontradas. Mas diante de um Van Gogh deprimido, de péssima aparência — sem a maioria dos dentes — e tomado por crises depressivas, parecia plausível que se suicidaria em 1890. O boato se espalhou pela Holanda, depois pela Europa. Anos mais tarde, o livro Sede de Viver (1934) e sua adaptação cinematográfica (1956) popularizaram Van Gogh como um suicida pelo mundo.

Naifeh e White acreditam num disparo acidental. A hipótese deles é que o tiro tenha ocorrido após uma briga entre o pintor e René Secrétan, um estudante de 16 anos, a cerca de 1,5 km da pousada. Visto sempre fantasiado de caubói, Secrétan andava com um revólver que usava para caçar pássaros, emprestado por Gustave Ravoux, o dono da pousada — e quem espalhou a notícia de suicídio. O garoto, conforme consta em entrevistas recuperadas, adorava azucrinar o pintor. No dia do acidente, um Van Gogh bêbado teria encontrado com o garoto e, depois de acalorada discussão, teria ocorrido a tragédia. “Na comunidade científica a descoberta foi recebida muito bem”, diz Steven Naifeh a ÉPOCA.

Destaque nos Estados Unidos desde seu lançamento oficial, em outubro de 2011, o livro é resultado de mais de 10 anos de pesquisa por documentos históricos acerca da vida do artista. Contando com a ajuda de onze tradutores e um sistema que digitalizou cartas inéditas em posse do Museu Van Gogh, os autores conseguiram reconstruir, “minuto a minuto”, a consciência do artista, como um romance.

Naifeh fala a ÉPOCA sobre o processo de pesquisa, explicita as dificuldades de escrever e comenta algumas das passagens do livro. 

ÉPOCA — Você e Gregory White Smith já haviam escrito uma biografia de outro pintor —Jackson Pollock: An American Saga (sem edição em português). Escrever sobre Van Gogh foi mais difícil?
Steven Naifeh - Escrever Jackson Pollock, mesmo demorando 10 anos, fora a coisa mais gratificante que eu e Greg já fizemos. Era inevitável que procurássemos escrever outro livro sobre um artista. A única questão era quem. Selecionando o tema de uma biografia, você quer alguém que fez algo muito importante, alguém que tenha tido uma vida fascinante, que deixou registros suficientes para reconstruir a vida e cuja biografia nunca foi escrita.
Pollock foi difícil de escrever porque não havia registros de sua vida interior, dos seus sentimentos. Tivemos de reconstruí-lo com base em detalhes externos. Van Gogh foi, por diferentes motivos, mais difícil de escrever. Ele deixou uma enorme quantidade de registros sobre sua vida interior, na maioria cartas para seu irmão Theo, o que nos deu uma obrigação e uma oportunidade de descrever, quase minuto a minuto, uma das mentes mais interessantes de todos os tempos.

ÉPOCA — Como vocês tiveram acesso e traduziram tantos documentos?
Naifeh - O Museu Van Gogh foi extraordinariamente generoso em nos dar acesso aos seus arquivos exclusivos, incluindo as inestimáveis cartas da família Van Gogh uns para os outros, todas nunca antes publicadas. Resolvemos a barreira lingüística contratando onze tradutores. Foi um grande desafio de tradução, e nós somos muito agradecidos aos tradutores que tornaram o projeto possível.

ÉPOCA — Na descrição do livro diz que vocês demoraram uma década para terminar o trabalho. O que foi o mais difícil?
Naifeh - O grande desafio foi a quantidade extraordinário de informação disponível para nós. A escala de pesquisa só se tornou possível por meio do trabalho do nosso time de TI (Tecnologia da Informação) que criou uma aplicação especificamente para nossa biografia. A aplicação nos permitiu digitalizar todas as fontes e então a organizaríamos digitalmente, e procuraríamos a base de dados inteiro de modo muito mais rápido. Teria demorado ao menos 30 anos para escrever o livro usando o sistema de “cartão de índices”, o mais tradicional, usado por nós mesmos em Pollock. Acho que ninguém mais teve o luxo de gastar tanto tempo como nós em pesquisas por cartas de Van Gogh e da família, em todas fontes primárias disponíveis, em todas as grandes fontes secundárias e em materiais da vida do século XIX na Holanda, França e Inglaterra, incluindo as obras que Van Gogh costumava ler.

ÉPOCA — Qual foi a maior surpresa que você encontrou nesses documentos?
Naifeh - Certamente a revelação mais importante do livro é nossa sugestão de que Van Gogh provavelmente não tenha se matado. Não dizemos, definitivamente, que ele morreu de um tiro disparado de modo acidental. O que dizemos é que, dado o peso das evidencias, um tiro acidental é muito mais plausível. Van Gogh se referia ao suicídio como covardia moral nas cartas. Na comunidade científica a descoberta foi recebida muito bem. Muitos psiquiatras nos disseram que essa nova explicação sobre a morte de Van Gogh faz muito mais sentido em decorrência do seu estado mental. Especialistas forenses — o tipo de especialista que examina evidências em casos de morte equivocados — nos disseram que as evidências de um tiro acidental são mais aceitáveis que as de um suicídio intencional. A comunidade de história da arte se dividiu, mas os curadores dos maiores museus que visitamos depois do livro concordaram com nossas explicações sobre a morte.

Na verdade, também há centenas, talvez milhares de novas informações no livro. Mas o que achamos ainda mais importante do que as revelações é que conseguimos reconstruir a vida dele em cada detalhe. Você pode ver uma consciência artística — a consciência artística de Van Gogh — desenvolvida com o tipo de detalhe que você obtém somente em um romance. Nesse caso tudo é verdade. Você pode entrar na cabeça de Van Gogh de modo que você não pode com qualquer outro que conhecemos. Muitos leitores e críticos nos disseram que isso é excitante. Isso fez valer cada dia da década que passamos nos dedicando à escrita do livro.

ÉPOCA — Van Gogh costumava dizer que sua vida não poderia ser dissociada de sua obra. Qual é a importância de elucidar os fatos como o decepamento de sua orelha, por exemplo?
Naifeh - Se não entendermos o quão difícil foi a vida de Van Gogh — e a auto-mutilação é uma evidência disso — não entenderíamos o triunfo de sua determinação sobre a adversidade. Suas pinturas são tão comoventes porque, em parte, são solenes mas também alegres. Nós vemos as pinturas pelos prismas da vida, assim como Van Gogh viu todas suas pinturas pelos prismas do que ele sabia sobre a vida de outros artistas. As pinturas e desenhos de Van Gogh não são apenas trabalhos muito bonitos, são triunfos da humanidade.

ÉPOCA — O sucesso de Van Gogh após a morte está relacionado com sua vida conturbada?
Naifeh - Não há duvida que o sucesso pós-morte está relacionado com sua vida conturbada. Mesmo com o sucesso limitado que teve no finalzinho de sua vida foi resultado de um artigo em um jornal Simbolista que chamou Van Gogh do mais importante artista do mundo. Isso foi uma afirmação extraordinária para alguém fazer naquele tempo. E o autor, Albert Aurier, realizou esse depoimento baseado não somente na arte de Van Gogh, mas também no incidente e no seu isolamento em um hospício no sul da França. O sucesso pós-morte de Van Gogh foi também possível pelo best seller Sede de Viver, de Irving Stone, e o filme do mesmo nome que foi lançado em 1956, ambos focados nos dramas das tragédias de vida. E ambos fizeram de Van Gogh uma celebridade internacional.

Avaliando a popularidade global e quase única de Van Gogh pelo mundo — ele é facilmente o artista mais amado da história — não podemos ignorar o completo prazer visceral que pessoas de todas as regiões do mundo, de todas as idades, com diferentes níveis de interesse em arte, sentem em suas pinturas gloriosas. Há algo muito imediato e acessível nas suas composições, nas suas cores intensamente saturadas e nas suas simples e poderosas mensagens de solidão combinadas com inspiração e alegria da vida.

ÉPOCA — Por ter sido o único familiar com quem Vincent Van Gogh se correspondia, o irmão Theo era tido como um devoto, um amigo inseparável do artista. No livro você mostra alguns atritos entre os dois até o fim da vida. Como você vê a relação entre ambos?
Naifeh - Não haveria Vincent sem Theo. Theo proveu Vincent com seu dinheiro e apoio emocional. Vincent nunca teria sobrevivido ou criado seu magnífico trabalho se Theo não o tivesse suportado de maneira muito generosa. Theo amava absolutamente seu irmão Vincent, mas era um amor complicado. Ele era um admirador do irmão mais velho na infância, porém ficava dividido ao notar que ele também se tornou um problema da família. Theo se sentiu no dever de suportar o irmão porque Vincent não poderia se defender por conta própria. Inevitavelmente, sobretudo depois de Theo se casar e ter uma filha, a obrigação de mandar a Vincent tanto dinheiro se tornou um pesado fardo.

ÉPOCA — Podemos dizer que hoje, nos anos 2000, vivemos numa “era da psicologização”. A maioria das pessoas possui algum distúrbio psicológico diagnosticado por especialistas. Se Van Gogh vivesse hoje, ele seria considerado um insano?
Naifeh - Se Van Gogh vivesse hoje, ele seria diagnosticado — assim como foi durante toda sua vida — como tendo Epilepsia do Lóbulo Temporal. Ele poderia também ser diagnosticado agora, assim como era então, com sífilis. Ele também provavelmente seria diagnosticado como um severo maníaco-depressivo. A grande diferença é que hoje ele seria medicado pesadamente. A questão é se ele seria Van Gogh que conhecemos se tivesse sido medicado, e se ele teria dado ao mundo o mesmo presente glorioso de tesouros que ocupam museus e exibições de todo mundo.

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